Brasiliense, Cris Pereira é personagem de Brasília. Integrou o grupo Batucada de Bamba e é presença certa nas principais rodas de samba da cidade. Cris também foi finalista do Prêmio Sesc Tom Jobim em 2009 e do Prêmio da Música Popular Brasileira na categoria Ivone Lara, em 2010.
Cris Pereira tem um disco solo lançado que se chama Folião de Raça, dirigido por Lucas de Campos e Leander Motta, que traz composições de sambistas de Brasília, como Cacá Pereira, Sérgio Magalhães, Vinícius de Oliveira, Ana Reis, e dela também. A obra conta ainda com a participação especialíssima de Dona Ivone Lara.
Paola Antony – Cris, como é sua história com o samba? A sua história aqui, na cidade. Pergunto porque eu sou de uma geração do rock local, depois vi o Clube do Choro crescer e, de uns anos para cá, tenho observado que o samba tem ocupado espaço, sobretudo antes da pandemia, por isso a curiosidade. Como foi que você caiu no samba?
Cris Pereira – Vamos lá, do começo. Eu sou de uma família negra, capixaba-carioca, que foi para Brasília na década de 70. Meu avô, carioca, foi transferido para Brasília naquele contexto de ocupar essa capital, então, saiu esse cara do Rio de Janeiro, trazendo a família para cá, e eles foram morar na Asa Norte, na 409, que já era um polo de muitos cariocas. Para aquela região, da 407 para lá, muitos cariocas vieram e deram um jeito de reinventar ali um pouco do seu cenário original. Eu já venho desse clima familiar. Na década de 80, 90, na minha infância, eram muito comuns na minha casa, na minha quadra, no meu prédio, por serem quadras de cariocas, os pagodes em casa. O almoço de família era uma coisa que começava no sábado e terminava na segunda-feira, com o povo pegando ônibus, aquele ônibus funcional, para levar todo mundo para o ministério. Eu me lembro disso desde muito pequena, cresci dentro do samba nesse sentido.
Profissionalmente eu caí nesse contexto porque comecei cantando no cenário de canto coral em Brasília, que é também um cenário muito quente, muito importante, pois Brasília tem um polo de corais bem importante internacionalmente, sabe? São corais premiados, conhecidos em outros países, e eu comecei cantando nesse contexto. Comecei muito nova, pois com 15 anos já cantava em corais, já viajava, já estava começando a me profissionalizar.
Fui crescendo, fiquei adulta, comecei a gostar da vida noturna. O coral exige disciplina do coralista, do cantor lírico, o que eu, naquele momento, não estava conseguindo oferecer, porque já gostava de ficar no sereno, tomar minha cerveja, minhas caipirinhas, e comecei a sair mais à noite, a participar de serestas, de rodas. Percebi que as músicas que eu ouvia nesse cenário mais noturno eram músicas que eu sabia, porque ouvia na minha infância, e foi como um reencontro, um reencontro para nunca mais voltar.
Passei a ir mais a essas rodas e, daí a pouco, comecei a dar canjas. Eu costumo dizer que comecei cantando num coral. O primeiro coral em que cantei tinha 300 pessoas, que é o coro sinfônico da UnB. Eu deixo aqui meu salve, minha admiração imensa pelo maestro David Junker, que é um cara visionário, criou um coral com 300 pessoas, o que foi uma experiência antropológica, social e cultural muito importante. Eu comecei cantando nesse contexto, então, fui para um coral com 30 pessoas, depois para um quarteto e do quarteto eu estava sozinha no palco cantando samba; eu fiz esse caminho. O samba me abraçou e a gente nunca mais se largou.
Paola Antony – Cris, e em Brasília, essa questão de você ter se encontrado dentro do samba, você acha que reverberou, pelo menos entre o público local, você percebeu que cresceu o público ligado a samba em Brasília?
Cris Pereira – Ah, sim, inegavelmente. Eu acho que sim, que vem crescendo e que vem se qualificando. Eu vejo o público de Brasília como um bom ouvinte de samba. A gente teve aqui em Brasília, talvez há 10 ou 15 anos, um projeto no Feitiço Mineiro chamado Gente do Samba. Por exemplo, a primeira vez que vi Dona Ivone Lara na minha vida foi nesse projeto, dentro do Feitiço Mineiro, me lembro da roupinha com que ela estava. Uma coisa mágica, era um projeto sempre lotado. Lembro-me de um show da Beth Carvalho do lado de fora do Feitiço Mineiro, com ela falando de reforma agrária e os shows muito cheios por um público que sabia o que estava acontecendo, o que estava ouvindo, vendo. Eu dei dois exemplos de artistas muito populares, mas outros compositores de samba tiveram espaço nesse projeto, como Monarco, Noca da Portela. As pessoas, às vezes, estão cansadas de cantar as músicas dos caras, mas não conhecem o compositor, e esse projeto trouxe esses artistas, talvez menos conhecidos, com a casa sempre cheia, e acho que essa tendência continuou. Brasília tem um público qualificado, a galera curte samba, consome as produções que estão saindo tanto daqui quanto de outros estados. É uma galera que está ligada, é o que eu percebo, um público atento.
Paola Antony – E o disco Folião de Raça, Cris? Disco lindo, que a gente vem ouvindo durante nossa conversa. Como foi conceber o projeto, a proposta dele?
Cris Pereira – O Folião, falando desse contexto da música de Brasília, surge disso. O que a gente queria no disco era fazer exatamente uma homenagem, um apanhado de alguns dos sambas de compositoras e compositores daqui, que a gente ouvia nos almoços. Vamos fazer um churrasco na casa de quem? E aquela roda rolando e, nossa!, olha esse samba do Cacá Pereira, meu Deus! Olha esse samba da Ana Reis, minha Nossa Senhora! Era tanta coisa linda que a gente pensou, gente, vamos registrar isso, e saiu o Folião. É um disco que tem compositores como Henrique Nepomuceno, Pedro Cariello, Cacá Pereira, eu me aventuro nesse disco como compositora também, Vinícius de Oliveira, Breno Alves, tudo gente daqui.
Na época, a gente morava numa chácara, eu e meu companheiro, que é músico também. A gente morava numa casa amarela e fazia pagodes homéricos. Muitas das músicas que estão no disco são músicas que a gente passava a madrugada cantando, sabe? Todo mundo. É um disco memorial para mim, é muito gostoso. Está difícil sair dele, estou terminando um outro que está custoso, mulher de Deus, está difícil, mas vai sair.
Paola Antony – Cris, e sobre a mulher no samba, como você vê essa questão hoje? E também aqui, em Brasília. São muitas, poucas, é fácil, vive-se alguma dificuldade?
Cris Pereira – Somos muitas aqui em Brasília. A gente tem até um projeto há 4, vai fazer 5 anos, que se chama Mulheres de samba. É uma roda de samba só de mulheres. Normalmente, antes da quarentena, a gente fazia a cada dois meses um “rodão”. Você chega aonde a gente está fazendo a roda e dá de cara com 40 mulheres sentadas, entre instrumentistas e intérpretes. É um projeto que tem exatamente esse objetivo, reunir as mulheres que estão fazendo samba em Brasília, hoje. E a gente mesma se surpreendeu com a quantidade. Eu acho que ainda falta um pouco de visibilidade, o que faz ser possível e necessária uma roda como essa. Já melhorou bastante, mas sempre pode melhorar, porque sempre pode piorar também. Como sempre pode piorar, a gente tem de trabalhar.
A entrevista completa de Cris Pereira para o Cumbuca está em áudio, com uma seleção musical que percorre sua carreira e que pode ser conferida no SoundCloud da Rádio Eixo.
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