Se você anda meio jururu, aproveita esse encontro, porque Emília Monteiro é alto astral, e o disco dela, Cheia de Graça, que vamos ouvir juntos é muito pra cima. Se você já a conhece e gosta, aproveita e vai afastando os móveis (para quem sabe dançar um pouquinho), para curtirmos o som dessa moça que mora há muito tempo em Brasília, mas é do Amapá, e é de lá que traz todo o axé.
Paola Antony - Emília, conta para a gente como foi que tudo começou.
Emília Monteiro – A música sempre fez parte da minha vida desde pequena. Meu pai era cantor quando havia rádio ao vivo lá em Macapá. Ele cantava na rádio. Tinha até o apelido de "bico de ouro", porque assoviava muito bem e tinha a voz bonita, encorpadona, parecendo a do Nelson Gonçalves. Não prosseguiu na música, acabou fazendo um concurso para o Banco do Brasil e engavetou o sonho.
Sempre tivemos muitas e variadas fontes musicais, de variados estilos. Ele sempre gostou de ouvir tudo mesmo, tanto MPB como influências internacionais.
O que me encantou desde pequena foram as intérpretes, as mulheres. Começou com uma paixão, aos 8 anos de idade, pela Rita Lee e seguiu com Elis Regina, Elza Soares, Elizeth Cardoso, Maysa, Maria Creuza, Maria Bethânia, Gal, enfim.
Sempre gostei muito de cantar, então, veio naturalmente, entre amigos, nos luais, bandinhas de escola, e começou a ficar mais sério e passei a abrir shows mais interessantes.
Com 19 anos, entrei em minha primeira banda, de axé, Banda Imagem, e foi muito divertido. Posso dizer que ali o palco me picou e, meses depois, fiz uma banda minha, autoral, com compositores de Brasília, como Paulo D’Jorge, Renato Matos, Paulo Tovar e a nova MPB. Nesse processo, meus pais voltaram para Macapá, eu fui passar um tempo com eles e deparei com o marabaixo, que é uma música do Amapá, o estado mais negro do Amazonas, tem toda uma influência do quilombo, e eu fiquei apaixonada por essa música.
Paola Antony – Emília, conta o que é o marabaixo.
Emília Monteiro – É um ritmo amapaense desenvolvido pelos negros que lá habitam. Primeiro, no Mazagão Velho, toda uma cidade do Marrocos foi levada para o Amapá, porque estava havendo uma invasão dos mouros e, como era uma colônia portuguesa, eles trouxeram todo mundo, brancos e negros, e a quantidade de africanos era muito grande. Eles moraram numa parte específica chamada Mazagão Velho e ali começou a semente do que hoje é o marabaixo e o batuque.
Marabaixo é um ritmo mais lento, como um lamento, mas é claro que, ao longo do tempo, se contemporaneizou e hoje não fala só das dores da época da escravidão. Eles colocavam nos textos das músicas o que eles chamavam de ladrão. O que é isso? É você pegar da sua realidade uma vivência, uma crônica daquilo que você vive, e você chega na roda e conta para todo mundo através da música.
Paola Antony – Qual a diferença do marabaixo para o batuque?
O batuque é generalizado como termo, mas, como ritmo, em Macapá, é realmente um ritmo chamado batuque, batuque do Amapá. Não é o marabaixo, já é depois da alforria, depois da escravidão, é um ritmo mais alegre, mais cheio de percussão, de vivacidade. Duas músicas no meu disco têm como referência o batuque, que são Coisinha e Mão de Couro, e a música embrião do disco, que é, como eu estava falando, um marabaixo, chama-se Mal de Amor, que eu passei sempre a cantar. Eu entendi que, morando em Brasília, poderia ter a responsabilidade voluntária de trazer um ritmo que as pessoas desconheciam, de um lugar que também desconhecem, que é o Amapá, que é meio inviabilizado dentro do panorama geográfico, econômico e social do Brasil e que também o é em relação à cultura.
Interessante também saber que é uma cultura matriarcal, pois são as tias do marabaixo que tomam conta dos terreiros onde acontecem as rodas no Macapá. No YouTube há um especial de um amigo meu, Fábio Gomes, que fez um curta, As Tias do Marabaixo, e está lindo, de orgulhar. É um Brasil que o Brasil ainda desconhece.
Paola Antony – Emília Monteiro, em seu disco Cheia de Graça, há outra grande referência do Norte, do Pará, que é uma música da Dona Onete, Eu Quero Esse Moreno pra Mim, e também Veneno de Cobra, que tem um videoclipe ótimo rolando. Como foi que essa música veio parar no seu disco?
Emília Monteiro – Eu cheguei a ela na maior cara de pau do mundo. Primeiro, eu consegui o contato do produtor dela, contei minha história para ele e depois falei com ela: "Dona Onete, a senhora não me conhece, mas eu queria tanto cantar sua música. Eu quero esse moreno pra mim, Dona Onete. E ela falou, "Minha filha, não posso lhe dar esse moreno, porque esse moreno não é meu, vou gravar. Mas, se você quiser, eu faço um moreno pra você". Ela me mandou a música que se chama Eu Quero Esse Moreno pra Mim, que é a frase que eu disse para ela, e me mandou também Veneno de Cobra, que acabou virando meio que organicamente o hit do CD pela malícia, pela história. As crianças amam essa música. É a história de três cobras que conversam; é tão surreal e, ao mesmo tempo, tão amazônica, tão incrível.
Paola Antony - Emília, você que se revelou grande conhecedora da cultura do Amapá, me diz uma coisa, qual é a comida típica do Amapá, ou qual é a sua comida preferida regional? Pergunto porque a ideia do Cumbuca é também falar sobre gastronomia. Não está rolando por causa do isolamento, mas conversar sobre o tema é possível.
Emília Monteiro – É muito diferenciado também dentro do cenário brasileiro de um modo geral. O Amapá e o Pará têm a mesma vegetação, então eles têm a mesma tradição gastronômica, que é de influência indígena direta, tanto que foi considerada a comida legitimamente brasileira por usar os ingredientes que temos aqui.
O açaí é um deles. Só que o meu açaí não tem nada além de farinha e um pouco de açúcar. Há também as frutas, vou falar as que eu mais gosto: cupuaçu, taperebá, bacuri, murici e tucumã. Já comeu salame de cupuaçu?
Paola Antony – Não.
Emília Monteiro – É um salame doce, fica tipo um puxa-puxa, sabe? Ele fica bem concentrado e misturam com castanha do pará, enrolam num plástico para ficar como um salame e você vai abrindo o plástico e cortando em pedacinhos e colocando na boca como se fosse uma balinha, fica chupando.
Há também um sorvete que eu amo, chamado carimbó, que também é cupuaçu com castanha do Pará.
Fora isso, há pratos incríveis, como o pato no tucupi. O tucupi é um líquido decantado, tirado da mandioca brava, precisa decantar para que não fique tóxico, porque ele pode até matar, assim como a folha da mandioca brava, que fica 72 horas cozinhando. Acho que não existe outro prato na culinária brasileira que fique tanto tempo no fogo quanto a maniçoba. A maniva, que é a folha, precisa ficar 4, 5, 6 dias fervendo, para que seja feita a maniçoba, que nada mais é do que a feijoada sem o feijão. Há todos aqueles ingredientes da feijoada, as carnes, mas substituindo pela folha da mandioca. Isso tudo é sapiência indígena, né?
A entrevista completa de Emília Monteiro para o Cumbuca está em áudio, com uma seleção musical que percorre sua carreira e que pode ser conferida no SoundCloud da Rádio Eixo.
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