Narayana Teles
É chegado um dos períodos mais esperados do ano, o período junino. Com ele, uma farta culinária, músicas e danças típicas de uma boa festa brasileira, identitária e diversa. De um colorido de encher os olhos e repleto de elementos convidativos à celebração da vida. “Olha pro Céu, meu amor. Vê como ele está lindo”, como não cantarolar esse clássico nordestino com um sorrisão no rosto?
Em um mês tão significativo e importante para a cultura brasileira, a Rádio Eixo conversou com Aterlane Martins, professor do IFCE (Instituto Federal do Ceará), que, atualmente, desenvolve uma tese de doutorado sobre o panorama da cultura junina no estado do Ceará. Aterlane foi brincante por cinco anos da Quadrilha Maria Bonita, na cidade de Caucaia-CE, nos idos de 1997. Mestre e Licenciado em História, coordena a Rede Nacional de Pesquisadores em Cultura Junina.
Contexto Histórico e Cultural dos Festejos Juninos por Aterlane Martins
Quando os portugueses colonizadores chegaram ao Brasil, trouxeram a sua religiosidade e impuseram aos habitantes do território (indígenas), uma religiosidade católica, cristã, de culto a alguns santos, Santo Antônio, São João e São Pedro, que vão entrar fortemente na cultura religiosa desse território (Brasil). A partir da devoção a esses santos, Santo Antônio (festejo em 13 de junho), São João (24 de junho), e São Pedro (29 de junho), passamos a ter um ciclo de festejo aos santos juninos. Essa devoção se populariza muito, assim como os nomes dos santos, por isso temos vários Antônios, vários Joões, vários Pedros. Essa popularidade toda fez com que nas festas de padroeiros das províncias das cidades, do Período Colonial até hoje, na celebração desses santos, existisse uma junção, uma criação de ciclo festivo, junto a esse ciclo festivo podemos falar de uma culinária feita à base do milho e à base da mandioca, que são duas culinárias de origem indígena. Observamos uma mescla da cultura do colonizador, da cultura europeia, da devoção aos santos, mas com uma presença forte de um elemento da cultura local, dos povos nativos. Como vivemos muito da agricultura, naquele período, e, ainda hoje, é um momento que se tem uma colheita da safra a cada ano dos roçados, um momento que se tem uma boa economia e as pessoas quando vão casar o fazem no finalzinho de maio, começo de junho porque também tem Santo Antônio, que no Brasil é tornado um casamenteiro. Todos esses elementos que foram reunidos, de culturas diferentes, criaram uma cultura junina dentro desses festejos. E, assim, passamos a ter a presença da Quadrilha.
A Quadrilha quando chega ao Brasil, que é um elemento importantíssimo das festas juninas, chega como uma dança de Corte, uma dança da elite, vem junto com a Coroa Portuguesa, em 1808, quando esta havia fugido de Portugal e desembarcado no Rio de Janeiro, estabelecendo, ali, uma nova Corte. Nas festas da Corte se dançava quadrilha, que era uma música e uma dança europeia, da França, da Inglaterra, da Alemanha. Em todos esses países se dançava a partir de uma música orquestrada e a partir de uma dança com passos muito lentos. Havia um mestre de dança responsável por conduzir os casais que iam se formando naquela ocasião. Essa dança foi se espalhando pelo Brasil, pelas capitais das províncias. Com o fim da Monarquia e o início da República no século XIX, a República tenta apagar todo o imaginário, todo elemento que fosse referente a esse período anterior. Então, a quadrilha caiu em desuso. Quem vai conservar a cultura dessa dança? As periferias e os sertões. Os trabalhadores dos palácios ou das famílias de elite tinham acesso a essa música e a essa dança, mas eles reproduziram ao seu modo, dessa forma passamos a ter uma quadrilha junina no Brasil. A quadrilha não era junina. Não precisava de um casamento para se ter uma quadrilha, mas quando ela se torna uma tradição, uma manifestação cultural brasileira, ela junta a si esses elementos. Atualmente, os festejos juninos acontecem nesse ciclo, em torno dos três santos, no mês de junho, e a gente prolonga até julho, e tem como elemento central as quadrilhas, ou seja, as quadrilhas são uma dança, uma festa em torno do casamento. É a festa da celebração desse casamento, por isso o elemento central da quadrilha é o casal de noivos.
Quadrilhas Juninas como Patrimônio Cultural
Aterlane Martins coordena o processo de registro das quadrilhas juninas como patrimônio cultural da cidade de Fortaleza-CE desde 2023, um projeto da Secretaria de Cultura do Município, que ao final de junho deste ano deve declarar as quadrilhas juninas patrimônio cultural da referida cidade. De acordo com o historiador, tornar as quadrilhas juninas um patrimônio cultural é de suma importância porque elas fazem parte de nossa identidade cultural. E, explica:
“Certamente, todo brasileiro, toda brasileira, em algum momento, ainda que seja na experiência escolar, dançou quadrilha. Quando não dançou, o que é muito raro de acontecer, no mínimo, participou de uma festa e teve acesso a essa cultura a partir da culinária ou a partir da sua fé religiosa. Então, tem vários elementos que nos ligam a essa cultura. É um traço de identidade. Esses elementos fazem parte da nossa identidade, esse período e as quadrilhas juninas são elementos constituidores da nossa identidade cultural. Nós nos identificamos com aquele momento que, ali, se passa, tanto que repetimos ano a ano. Isso fez com que se criasse uma tradição e se mantivesse essa tradição. E, por isso, hoje, se faz o reconhecimento como patrimônio cultural. O processo de patrimonialização é um reconhecimento de um bem cultural, que é a Quadrilha, que são as festas juninas como um traço da nossa identidade cultural”.
Preservação e Valorização da Memória
Aterlane Martins menciona que é importante também trabalhar com a memória. De acordo com o professor, o que se faz como quadrilha hoje não é o mesmo que se fazia na década de 1970/80/90. Que memória nós temos dessas décadas? Indaga. E, responde, em seguida, quase nenhuma memória construída. Portanto, segundo ele, é preciso ouvir as pessoas que faziam as quadrilhas nos anos 70, e cita dois mestres da cultura no Ceará, intitulados Tesouros Vivos pela Lei dos Mestres do Governo do Estado*, que são mestres da cultura junina: mestra Mazé Costa, da cidade de Caucaia-CE, e o mestre Raimundo Claudino, da região do Vale Jaguaribe de Limoeiro do Norte-CE.
“Essas pessoas têm uma vivência de várias décadas e essa vivência precisa ser vista, conhecida por nós. Como podemos fazer isso? Através de uma publicação, de entrevistas, documentários que a gente possa difundir a experiência desses dois mestres e de tantas outras pessoas que também fazem parte, ao longo do tempo, dessa trajetória das quadrilhas juninas. Assim, compreenderemos como elas iniciaram, como foram se transformando até chegar no modelo que temos hoje”, afirma Aterlane.
Quadrilha Espetacular
Hoje, o modelo existente das quadrilhas é caracterizado como espetacular. Aterlane avalia o presente modelo numa perspectiva de fazer uma leitura de diversidade, que não se refere a uma perspectiva de indústria cultural, de mercado, desse espetáculo mais comercial, a referência ao espetacular dá-se pela beleza e profissionalidade com que ela se mostra, e pondera:
“Em uma apresentação de quadrilha você tem a presença do teatro, da música, da dança e das visualidades. São quatro linguagens artísticas que se envolvem para montar um espetáculo, e é como elas chamam hoje as suas apresentações. Então, se a quadrilha faz um espetáculo ano a ano, um adjetivo que poderíamos usar é espetacular, no sentido de que ela monta um espetáculo ano a ano. Se fala muito, na minha visão, erroneamente, sobre a carnavalização do São João. O que temos na verdade é uma espetacularização do São João. Tornar a cultura popular um espetáculo não é um problema. Como a gente vem tendo uma qualificação técnica e tecnológica, as quadrilhas se apropriaram disso para fazer o seu espetáculo. Se formos olhar as outras manifestações culturais, como o Reisado, o Maracatu, eles se apropriaram também dessas tecnologias contemporâneas e do modo de fazer contemporâneo. Isso não descaracteriza, de forma alguma, a tradição, porque a tradição é justamente uma repetição. Uma repetição é feita pelas pessoas e vai mudando ao longo do tempo porque as pessoas vão mudando, a sociedade vai mudando, a mentalidade da sociedade vai mudando. Então, o que ela produz como expressão cultural também muda. Por isso, hoje, não temos aquela quadrilha que durante um tempo se chamou de matuta, de caipira, que, inclusive, não são bons adjetivos para se usar, atualmente. Se chamássemos uma quadrilha de sertaneja, que remete ao espaço rural, já seria uma outra significação. Mas, temos quadrilhas tanto do espaço rural, quanto do espaço urbano, e qualquer uma delas tem essa característica do espetáculo. Se tivermos que congregar todas numa característica comum seria a categoria do espetáculo. Então, é Quadrilha Espetacular”.
As Quadrilhas enquanto atos políticos e pedagógicos
Conforme Aterlane Martins, as Quadrilhas estão para além de uma expressão artística e cultural, elas são também atos políticos e pedagógicos. Desde a década de 1990, principalmente a partir dos anos 2000, elas têm trabalhado diversas temáticas, inclusive, muitas delas não têm a ver com o São João, como por exemplo, as temáticas históricas:
“Três Quadrilhas do Ceará já trabalharam os campos de concentração, que é um episódio da nossa história muito escondido, muito apagado, um episódio de sofrimento, mas elas ressignificaram essa história e levaram para as quadras. As Quadrilhas se apresentam para milhares de pessoas, a partir do momento em que elas contam essas histórias, elas estão ensinando. Então, trabalham de forma pedagógica. A pessoa que nunca leu em um livro de história sobre os campos de concentração, passa a saber que ele existe, passa a saber como foi e qual o significado disso através de uma Quadrilha”.
As Quadrilhas já tematizaram também a cultura indígena e a cultura quilombola. Aterlane comenta que mesmo que as pessoas nunca tenham estudado esses temas nas escolas, passam a ter acesso a elementos da cultura negra e indígena a partir de um espetáculo de quadrilha. Nesse sentido, a Quadrilha educa e possui um traço político porque está colocando em cena pessoas que socialmente são marginalizadas, que nunca tiveram no foco, que nunca foram a centralidade.
As Quadrilhas que surgiram no Brasil, trazidas pelo colonizador como expressão da cultura de elite, são hoje uma cultura popular. Elas falam de si, falam dessa diversidade. As Quadrilhas são um espaço de acolhimento para a comunidade LGBTQIAP+, sobretudo, para as pessoas trans. Uma figura super importante da quadrilha é a rainha. No Ceará, há várias rainhas que são mulheres trans. Para Aterlane, ser uma mulher trans, que na sociedade é quase sempre uma pessoa que sofre muito com os preconceitos de uma sociedade machista, misógina, LGBTfóbica, naquele espetáculo, ela é uma figura central, tão importante quanto o casal de noivos naquela festa. Isso é um ato político também. Ao responder à pergunta sobre o que há de mais belo nos festejos juninos, o professor e pesquisador afirmou que a beleza das quadrilhas juninas é estar conectada com a vida contemporânea. É manter uma tradição secular de acordo com o tempo presente.
A presença de pessoas trans nas quadrilhas
Há alguns anos, não era permitido se apresentar no São João com o gênero ao qual a pessoa se identificava. Se isso acontecesse, a quadrilha junina corria o risco de perder pontos nas competições. Com a mãe costureira, que fazia produção em um grupo junino, e com a irmã que dançava em quadrilhas profissionais, Alexya Viana passava o ano transicionando (fazendo a transição de gênero) e quando chegava o São João, cortava o cabelo para poder dançar, ou seja, dançava com o gênero pelo qual ela não se identificava. Por meio de muita luta e insistência, Alexya conseguiu o que tanto desejara.
A Rádio Eixo conta com o fomento do FAC - Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal
Para ouvir a matéria, acesse: https://soundcloud.com/radioeixo/narayana-junino
*A Lei Estadual 13.842, de 27 de novembro de 2006, que instituiu o Registro dos “Tesouros Vivos da Cultura” no Estado do Ceará, é uma lei pioneira no Brasil, voltada para o reconhecimento dos saberes e fazeres dos mestres e mestras da cultura tradicional e popular.
Fonte: Secretaria da Cultura do Estado do Ceará.
**O concurso “Rainha G” é destinado a pessoas LGBTQIAP+, antes denominadas GLS. Hoje, o concurso é chamado “Rainha da Diversidade”.
ÁUDIO
Comentários