Narayana Teles
“Eu me sinto uma pessoa com coragem, eu quebrei a barreira do medo, eu quebrei essa cultura do patriarcado e estou no mundo, vivendo. Vivendo de um jeito que a mulher jamais poderia viver”
Ela não sabe ao certo a quantidade exata de países que já conheceu, a lista passa dos 60. Viajar pelo mundo com uma mochila nas costas é algo que ela faz com naturalidade. Estamos falando de Josefa Feitosa, Jô, como gosta de ser chamada. Uma mulher preta, cidadã do mundo, que ama gente por atacado e varejo. Vive e mora onde a mala está. É dessa forma que se autodescreve. Em outubro de 2024, serão 8 anos de viagens realizadas em diversos continentes por uma jovem senhora de 64 anos.
“Só existem duas idades: viva e morta.
O tempo passa e a gente sente uma urgência de viver”.
Essa urgência de viver é sentida por Jô desde criança, quando ainda morava em Juazeiro do Norte, Ceará. A vontade de conhecer o mundo surgiu na infância, a partir de seu pai, quando ele ouvia no Rádio o noticiário “A Voz do Brasil”. Ali, a pequena Jô sabia que existia um mundo bem maior do que ela conhecia no interior do Ceará, na cidade de Juazeiro do Norte, estava para além do ir e vir das pessoas na estação de trem, que ela adorava frequentar com seu pai para admirar as pessoas que transitavam entre as plataformas.
“Eu morei no meu pensamento. Sempre existiu essa vontade de querer ir embora, de conhecer o mundo. De um dia pegar um pau de arara de romeiro, que andava pelo Juazeiro, no Ceará, e ir embora”, recorda Jô.
Por mais de 30 anos, trabalhou como assistente social no sistema penitenciário cearense, onde, de maneira lúdica, realizou atividades, como a construção de fanzines. Nos papéis, histórias de pessoas privadas de liberdade, representadas por palavras e imagens. Com a caneta em mãos, um pouco de liberdade era proporcionada aos internos e internas do sistema prisional. No entanto, a liberdade era mais que isso. Para Jô, significava movimento, não o movimento da caneta no papel, mas o movimento do portão ao ser aberto e essas pessoas saírem para onde quiserem, em liberdade. Foi assim que ela percebeu que existiam outras prisões de portas abertas, uma delas era a sua própria casa. Um lugar onde era obrigada a estar, mas que não gostava porque não se identificava com os afazeres domésticos. Se sentia à vontade na rua, vendo o mundo acontecer, olhando as pessoas.
Educou seus três filhos. Cuidou de sua mãe, que tinha Alzheimer. Ajudou na criação do neto. Se aposentou em 2016. Vendeu carro, casa. Pôs seus sonhos em uma mochila e saiu pelo mundo. De lá pra cá, rotas, mapas. A cada passo dado, o mundo que sai do lugar, parafraseando o artista pernambucano Siba.
Com um vocabulário de 100 palavras e sem saber colocar os verbos nos tempos certo, Jô morou na Irlanda, na África. Conheceu pessoas e seus lugares. Dessa forma, saiu da rota turística e passou a desfrutar momentos singulares, como a ida a locais frequentados apenas por nativos, que faziam questão em compartilhar as belezas de seus locais com ela. Na África do Sul, por exemplo, Jô sentiu pisar em seu chão. A culinária era bem parecida com a brasileira e ela via muita gente preta: no outdoor, na novela, na algazarra de vários meninos com seus cabelos que pareciam obra de arte. Foi morando em lugares que a acalantavam, com pessoas que a convidavam a ficar. Passou um tempo em Kwazulu-Natal, terra dos Zulus, onde de uma janela, em frente ao mar, avistou baleias migrando para o Brasil. Jô enche os olhos ao recordar a cena e revela:
“Pretendo conhecer o Japão, a Austrália. Quando eu der a volta ao mundo vou revisitar alguns lugares onde fiz amizades. É muito fácil viver. É delicioso não ter boletos. Eu não preciso fazer contas. Eu me sinto uma pessoa com coragem, eu quebrei a barreira do medo, eu quebrei essa cultura do patriarcado e estou no mundo, vivendo. Vivendo de um jeito que a mulher jamais poderia viver porque era considerada mundana, prostituta”.
Jô comenta que vivia para os outros, e, que, ao se aposentar, decidiu viver para si. Se deu a oportunidade de ser sua própria cuidadora, suprir suas necessidades, ter paz, carinho, adquirir conhecimentos. Confessa ter ficado estagnada muito tempo. Não sabia quem ela era porque não havia tempo para isso, havia gente demais para cuidar.
No ano de 2020, durante a pandemia da COVID-19, morou em um povoado na Chapada Diamantina, Bahia. Momento de pausa, de pouso. Foi quando viajou para dentro de si mesma. Cansada de seu cabelo branco, pintou ele de azul. Fez sucesso no povoado. “A senhora é do circo?”, as crianças perguntavam. “Tem uma idosa de cabelo azul que precisa tomar a vacina”, alertou um morador à moça que trabalhava no Posto de Saúde.
“Eu não tenho muita idade, eu tenho é muita vida.”
Jô é única em suas frases. Inventiva e bem-humorada. Tudo a impulsionou a ser o que ela é hoje: uma pessoa que segue o fluxo da vida, que aceita o vir, de modo natural, com leveza, deboche (ela é de aquário), que não tem medo de gente, que aprendeu a olhar as pessoas e enxergá-las, e, que, merecidamente, está sendo homenageada em vida. No dia 15 deste mês, estreou na cidade de Fortaleza/CE, o monólogo “Egoísta”, inspirado em sua trajetória. A peça irá para o Rio de Janeiro no mês de julho, encenada pela atriz cearense Ana Marlene e sob direção de Juracy de Oliveira. Para quem começou a andar pelo mundo, despretensiosamente, apenas com vontade de viver, ser a personagem principal de um espetáculo em Fortaleza/CE é uma honra, declara Jô.
Ao fazer a seguinte pergunta: o que que a gente leva dessa vida, Jô, o que você carrega em sua mochila?
“Preciosidade dos meus momentos, de encontros com pessoas, comigo mesma. São momentos de alegria, do prazer de estar ali, naquele lugar, que é indescritível. É isso que quero ter da vida, coisas que eu possa levar comigo. Não quero carro, roupa, nada. Apenas ser infinitamente feliz.”
Jô é livre e possui o bem mais precioso da humanidade: tempo. Ela é a prova mais contundente de que não existe idade certa para (re)começar. Sabe aquela pergunta boba: o que você quer ser quando crescer? Eu trocaria por: quem você vai ser quando crescer? Eu quero ser uma Jô. Bem que ela poderia virar um adjetivo, ou um verbo, talvez um sinônimo. Como diz Marina Lima: “Descubra de verdade o que você ama e o mundo pode ser seu”.
Evoé, Jô!
A Rádio Eixo conta com o fomento do FAC - Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal
Para ouvir a matéria, acesse: https://soundcloud.com/radioeixo/narayana-teles-josefa-feitosa?in=radioeixo/sets/jornalismo-radio-eixo
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