Há um bom tempo, observo e admiro uma contrabaixista da cidade de Brasília, também compositora, autora, inclusive desta música que estamos ouvindo, Paula Zimbres. Figura talentosa, discreta, concentrada, elegante e a única contrabaixista que conheço.
Não que não haja outras. Espero que haja, mas eu só conheço Paula e já a vi muitas vezes em muitos shows com artistas diferentes, naquele tempo em que se podia ir a shows, e continuo acompanhando-a pelas redes sociais. Paula Zimbres é nossa convidada de hoje do Cumbuca, programa de entrevistas da Rádio Eixo, que tem o patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal – FAC.
Paula Zimbres, além de contrabaixista, compositora e cantora é professora e mestra em Musicologia. Atua como instrumentista em diversas formações e tem se aproximado mais recentemente do universo da canção, musicando poemas e interpretando músicas de mestres como Milton Nascimento, Egberto Gismonti e Gilberto Gil, história que irá nos contar no Cumbuca de hoje.
Paula tem também dois discos solo inteiramente autorais: Água Forte (2012), produzido por André Mehmari; e Moinho (2017), produzido por ela mesma. São as músicas desses discos que iremos ouvir a partir de agora na Rádio Eixo.
Paola Antony – Paula, sabe que, entre os convidados do Cumbuca, você é a primeira mulher instrumentista com quem eu converso? Inclusive você é uma referência para mim. É a baixista da cidade. São poucas as mulheres nos instrumentos, no contrabaixo, não é, Paula?
Paula Zimbres – É verdade. Há uma divisão social do trabalho na música. Para as mulheres cabe cantar e cabem certas posições, mas quem vai tocar é uma cantora com uma banda toda de homens. Isso é o mais comum. Por que o instrumento — acho que há questões filosóficas que devem ser muito interessantes de explorar — é do homem e a voz é da mulher? Porque a voz já está no corpo dela, como se ela já nascesse com aquilo, o que não é verdade, porque há muito estudo, muito desenvolvimento também. Acho que a impressão que dá é que a mulher já nasce sendo a diva e que o homem batalha para dominar um instrumento. Acho que há umas representações simbólicas importantes aí.
A verdade é que a gente tem de superar isso, e há também uma questão que é um círculo vicioso. Eu sempre penso nisso, porque isso tem origem na escola. Você chega à Escola de Música, no departamento do baixo, e só há homens. Às vezes uma menina até se interessa em estudar baixo, mas olha aquele monte de homens, uma menina que chega com 13, 14 anos pensa, eu, não, eu vou estudar flauta, sei lá, piano. E acontece mesmo, eu tenho relatos disso. Uma menina estava me falando outro dia que foi fazer um curso pontual de baixo na Escola de Música, adolescente, e chegou naquela turma cheia, um monte de homens, aquele esteriótipo homem grandão tocando baixo, e ela se sentiu superdesconfortável e desistiu. Então, é um círculo vicioso. A gente imagina que o baixo é um instrumento de homem; chega lá e realmente só há homens. A mulher tem de ter uma vontade muito grande.
Paola Antony – Com você, como foi, Paula?
Paula Zimbres – Acho que eu era muito avoada e demorei a perceber que era assim (risos). Eu já estava tocando quando entendi. Já houve situação, por exemplo, de eu estar tocando em bar de hotel, já estava tocando há muitas semanas, e, um belo dia, percebi que só havia homens e eu era a única mulher no bar inteiro e que provavelmente era assim todas as vezes, mas eu não tinha reparado. Só reparei aquela vez.
Paola Antony – Que bom, então, que você é avoada, hein?
Paula Zimbres – Pois é (risos). Não havia problema, mas foi uma coisa que reparei naquela hora. Eu comecei com 14 anos no baixo. Estudava piano antes, estudei violão também e, quando comecei, não percebi que havia uma coisa de gênero em tocar baixo, acho que fui perceber um pouco mais tarde. Eu tive vontade de fazer simplesmente porque comecei a me sentir atraída pelo som grave. Comecei a gostar de rock, queria fazer parte de uma banda e me senti atraída pelo instrumento, num primeiro momento, sem perceber que era uma coisa inusitada. Só fui percebendo, ao longo do tempo, que era uma questão. Há coisas que a gente vai vivendo aos poucos, vai percebendo, por exemplo, eu, mais nova, ia a uma loja de instrumentos e ficava meio sem graça de pegar o baixo para experimentar, porque eu sabia que os vendedores iam ficar me menosprezando e querendo fazer mansplaining, é, vamos ver se toca mesmo. Você fica meio sem graça em algumas situações e fica querendo evitar a fadiga.
Paola Antony – Quando você se profissionalizou, como foi a entrada na cena musical de Brasília, essa mesma questão a atrapalhou, ajudou, não fez diferença? Como foi?
Paula Zimbres – Há momentos em que atrapalha e momentos em que ajuda. Atrapalhou em alguns momentos, como eu falei, eu comecei adolescente, tocava em algumas bandas de rock, de metal, e percebi depois também que sempre havia uma coisa de subir no palco e ouvir "gostosa". Eu achava que isso era normal, que seria assim a vida inteira e, quando parei de tocar rock e fui tocar outras coisas, nunca mais isso aconteceu. Então, acho que era daquele ambiente mesmo o negócio. Em outros momentos, em alguns sentidos, acho que ser mulher atrapalhou por me sentir desconfortável em alguns ambientes e querer evitar situações difíceis. Isso atrapalhou, atrapalhou o meu desenvolvimento, porque cria essa coisa da síndrome do impostor, né?, que falam e que as mulheres têm muito. Acho que todo mundo tem, mas as mulheres especificamente. O fato de ser a única mulher entre homens fortalece essa questão da síndrome do impostor, que você não deve ser tão boa assim, sei lá. Isso me impediu às vezes de tomar atitude, tomar a frente de certas coisas, coisas que estou fazendo mais agora, amadurecida.
Paola Antony – Paula, como está a produção nesse período? O que você anda fazendo?
Paula Zimbres – Eu tinha planos de tocar e de fazer shows e, com esse corte repentino de mais de ano, comecei a estudar piano e tocar mais como recurso de sanidade mesmo. Com o convite de fazer lives, comecei a pegar canções que eu cantava e desenvolver arranjos de baixo e voz e fiz algumas lives nesse formato, que é um pouco inusitado, mas existe.
São músicas importantes para mim, que eu amo muito. Tenho dois discos com composições minhas, e o que estou gravando agora, que pretendo lançar em breve, são composições de outras pessoas. Há composição do Egberto Gismonti, Tom Jobim, Zé Miguel Wisnik, duas do Gilberto Gil. São músicas que foram importantes para sustentar uma coisa sã durante esse tempo, porque a gente está num momento tão difícil de ser brasileiro, né? Eu fiquei pensando muito nesse ano que, se não fosse a música brasileira ser o que é, seria muito fácil para mim desistir do Brasil. Mas, por causa da música brasileira, eu acho impossível dizer que esse país não presta. É rica demais, é bonita demais e é prova de uma coisa espiritual importante que a gente tem e de que não dá para desistir, por mais iniquidades que aconteçam. Foi meio que uma homenagem a isso, à importância que isso teve para mim. Eu estou gravando essas 7 faixas, é um EP, que vou lançar com o registro de um repertório que fiz nessa quarentena, que é o que foi possível, uma homenagem a essa música brasileira que sustenta nossa energia num momento tão difícil.
Paola Antony – Paula, a gente vem falando muito da instrumentista, mas há também a cantora e a compositora. Dois discos lançados.
Paula Zimbres – Pois é, em 2012 eu lancei meu primeiro disco, que se chama Água Forte. Ele é todo de composições minhas e tive a sorte de trazer o André Mehmari para produzir. Foi muito especial. Era um superdesafio, a primeira vez que estava colocando minhas composições, tendo de me expressar com certo vigor.
Um tempo mais tarde, quando estava me sentindo bem mais tranquila, gravei o Moinho, entre 2016 e 2017. Fiz tudo independente e foi mais legal ainda. Eu ouço nele mais confiança e mais alegria também. O primeiro disco tem uma sonoridade meio tristonha, meio densa, e o segundo eu já acho superalegre, supersolar. Eles são diferentes nesse sentido.
O segundo disco chama-se Moinho, que é o nome de um povoado na Chapada dos Veadeiros onde minha família tem uma chácara. Minha avó comprou essa chácara acho que em 90 e ela ficou sendo da família e, desde 2010, comecei a ir muito para lá e ter umas experiências muito legais de aterramento, de estar mais presente, mais próxima da natureza, mais próxima do cerrado e isso se reflete na sensação de me sentir mais em casa onde eu estou. Eu sempre tive a cabeça voltada para viajar, imaginar lugares distantes, mas isso me deu um centramento, saber onde estou e o que estou fazendo. Essas músicas são inspiradas nesse lugar, no cerrado, na estrada de terra, na cachoeira, e a primeira música que a gente pode ouvir chama-se Quatro Pontes. O nome vem da estrada de terra que leva a esse povoado, porque você cruza quatro pontes. É a referência que dou quando alguém vai passar um tempo com a gente. É uma música de que gosto muito, ela caminha muito, tem uma coisa de ir seguindo, parece que está subindo e descendo morros e essa música foi para a final do festival da Nacional FM.
Paola Antony – Chegamos ao fim de mais um Cumbuca, que hoje se encontrou com a contrabaixista, compositora e cantora Paula Zimbres, mais uma artista fundamental para a cena e a identidade musical de Brasília. Espero que você tenha gostado. A você, que está conosco, muito obrigada pela companhia.
O Cumbuca tem o patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal – FAC e os trabalhos técnicos são de Santana Sam. Na semana que vem, eu volto com um novo artista e espero você.
A entrevista completa de Paula Zimbres para o Cumbuca está em áudio, com uma seleção musical que percorre sua carreira e que pode ser conferida no SoundCloud da Rádio Eixo.
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