
Instrumentista virtuoso, Roberto CorrĂȘa, nosso convidado de hoje do Cumbuca, Ă© um dos pioneiros na recente expansĂŁo do uso da viola caipira no Brasil. Seus trabalhos, alĂ©m de expressĂŁo de sua arte, apontam novos caminhos para o instrumento.
Radicado em BrasĂlia desde 1975, tem 19 discos e 3 livros lançados. Ă graduado em FĂsica e em MĂșsica pela Universidade de BrasĂlia e doutor em Musicologia pela USP. Roberto CorrĂȘa Ă© um dos mais importantes nomes da viola no Brasil.
Roberto CorrĂȘa â A viola Ă© um instrumento que estĂĄ muito ligado ao meio rural, instrumento que chegou aqui com os portugueses e que, nas tradiçÔes populares, Ă© usado como o principal acompanhador das prĂĄticas populares, tanto religiosas, como profanas: as folias de reis, as danças, catiras, lundus, Ă© tudo feito com viola. Para vocĂȘ ter uma ideia, o violĂŁo chegou ao Brasil no começo do sĂ©culo 19, tudo antes era feito com viola. AtĂ© no Rio de Janeiro, a capital, Salvador, a viola era o instrumento principal, e o violĂŁo chegou, principalmente no meio urbano, e assumiu o lugar da viola atĂ© o ponto de as pessoas acharem, por exemplo, que nĂŁo existia viola no Rio de Janeiro.
A viola Ă© um instrumento que, a partir da dĂ©cada de 1960, começou a ser utilizada de forma mais diversificada, vamos dizer, desvinculada dos contextos sociais do meio rural, porque geralmente a viola Ă© ligada a um contexto social, ou Ă© uma reza ou Ă© uma dança. Esses mĂșsicos começaram a usar o instrumento de forma solista. Com isso, o instrumento começou a alçar voos alĂ©m do usual, diferente do que sempre acontecia no Brasil, que eram as prĂĄticas populares. Isso foi crescendo, nĂłs tivemos grandes mĂșsicos, por exemplo, Renato Andrade, TiĂŁo Carreiro, em linhas diferentes.
Quando deparei com a viola, em Campina Verde, isso em MG, eu sou do interior de Minas, da regiĂŁo dos Gerais, a viola era ligada Ă folia de reis e catira. Vim para BrasĂlia, eu jĂĄ estudava violĂŁo, atĂ© que de novo deparei com a viola. A gente tinha um grupo de mĂșsica popular lĂĄ na UnB, eu fazia FĂsica na ocasiĂŁo, um grupo chamado Olho dâĂgua, me encantei com o instrumento e passei a fazer minha histĂłria com ele.
Minha ligação com a viola me permitiu expressar a minha mĂșsica e a minha mĂșsica era bem diferente, vamos dizer assim, dos toques tradicionais de viola, como outros violeiros que fizeram um caminho parecido e nĂłs fomos contando outra histĂłria, histĂłrias contemporĂąneas atravĂ©s do instrumento. Eu digo que sou um caipira contemporĂąneo, fazendo mĂșsica contemporĂąnea, tanto que as pessoas perguntam: "Que tipo de mĂșsica vocĂȘ faz?". Eu digo que faço mĂșsica caipira. "Ah, mas sua mĂșsica Ă© diferente". Ok, e Ă s vezes, atĂ© para quebrar o conceito das pessoas, eu digo que faço mĂșsica caipira erudita. Nem eu sei o que Ă©, mas o que eu quero Ă© quebrar um conceito estabelecido para que a pessoa nĂŁo tente fazer uma ideia da mĂșsica sem ouvi-la, a pessoa tem de primeiro ouvir para depois tentar entender. Criar um novo compartimento de mĂșsica? JĂĄ hĂĄ tantos. Ă musica caipira.
Paola Antony â Roberto CorrĂȘa, Ă© muito gostoso observar como realmente sua mĂșsica transporta a gente para um lugar do Brasil, uma paisagem de interior, Ă© incrĂvel isso.
Roberto CorrĂȘa â Pois Ă©, Ă© uma comunicação sensorial e emocional, atĂĄvica tambĂ©m, impressionante. A viola nĂŁo Ă© sĂł o instrumento, eu acho que Ă s vezes vocĂȘ vĂȘ uma pessoa tocando o instrumento e o instrumento nĂŁo o conecta. Acho que, no meu caso especĂfico, a mĂșsica que faço, a minha expressĂŁo musical, tem muito a ver com meus antepassados, com essa mĂșsica que veio antes de mim, mesmo sendo moderna, eu acho que tem essa conexĂŁo. Eu digo isso nĂŁo sĂł porque eu sinto isso, mas pelo retorno que recebo das pessoas. Poxa, jĂĄ sĂŁo mais de 40 anos de viola, fazendo recitais em todos os lugares do mundo, no Brasil todo, e as pessoas me dizendo isso, que a mĂșsica acabou transportando-as para reminiscĂȘncias, lembrando de pais, avĂłs. NĂŁo sei se todo violeiro passa por esse tipo de coisa, mas eu acho que minha mĂșsica tem essa ligação atĂĄvica.
Paola Antony â Roberto, vocĂȘ falou que sĂŁo 40 anos de carreira, 40 anos com sua viola do lado. Desses 40 anos, quais sĂŁo os momentos que vocĂȘ gostaria de destacar?
Roberto CorrĂȘa â Um dos momentos importantes foi a gravação do disco UrĂłboro, que talvez seja meu disco mais importante. UrĂłboro aconteceu num momento muito especial, muito particular da minha vida, eu diria. Eu estava enfrentando um problema de saĂșde sĂ©rio, podendo vir a morrer desse problema. Eu identifiquei um tumor no cĂ©rebro que estava afetando meu braço direito e o que se podia fazer era uma cirurgia retirando esse tumor, sem saber quais as sequelas disso, porque era na regiĂŁo motora, sem se saber se eu ia parar de tocar. Foi um momento muito difĂcil da minha vida e fiz alguns planos, vamos dizer assim, para antes de morrer deixar algo. As coisas mais importantes que tinha na minha vida eram minhas composiçÔes, entĂŁo, gravei esse disco com minhas composiçÔes. Um disco que eu imaginava que nĂŁo teria acolhida, porque minha mĂșsica nĂŁo Ă© uma mĂșsica simples, Ă© complexa, Ă s vezes, bem diferente da mĂșsica tradicional da viola e, para minha surpresa, havia um pĂșblico para esse tipo de mĂșsica. Ă o disco que mais vendi na vida, 12 mil cĂłpias. Ă um feito muito grande, sobretudo para a mĂșsica instrumental, eu realmente fiquei muito surpreso com isso. Foi um momento muito especial.
Paola Antony â O que Ă© UrĂłboro?
Roberto CorrĂȘa â Ă um sĂmbolo mĂstico encontrado em muitas civilizaçÔes antigas. Ă aquela serpente que devora sua prĂłpria cauda, formando um cĂrculo. Por que isso? Porque, naquele momento que eu estava vivendo, a ideia era de morte, convivendo com a morte, mas a minha luta era para que nĂŁo houvesse esse final. Olhando de frente, era realmente um cĂrculo, mas, olhando de lado, era uma espiral. Quer dizer, a morte seria uma morte de vĂĄrias coisas, mas a vida continuava. A vida fĂsica, que era o que eu queria, ali, onde a cobra estĂĄ comendo a cauda, era a espiral, ou seja, eu nĂŁo preciso morrer fisicamente, morrem outras coisas, porque eu preciso evoluir, e vamos firmes, que eu quero viver. E deu certo. EntĂŁo, UrĂłboro era isso, essa lida da vida com a morte.
Paola Antony â Roberto, quais sĂŁo seus projetos presentes e futuros?
Roberto CorrĂȘa â No ano passado, lancei um livro baseado na minha tese de doutorado, com o mesmo nome, A viola caipira: das prĂĄticas populares Ă escritura da arte. Cinco anos depois, pude fazer um apanhado geral, acrescentei coisas e fiquei muito feliz, porque finalizei a parte da pesquisa. Minha vida foi assim com a mĂșsica: a educação, o ensino do instrumento, a pesquisa e a parte de performance. A parte de ensino eu cumpri com os mais de 30 anos na Escola de MĂșsica, escrevi um livro sobre essa parte, que Ă© A arte de pontear viola, que tem todo o processo de ensino que eu desenvolvi. A parte de pesquisa eu coloquei nesse livro recĂ©m-lançado e agora estou por conta de compor, de tocar, da performance. Um projeto em que estou envolvido agora Ă© de escrever, Ă© repertĂłrio, escrever todas as minhas composiçÔes, tanto as mĂșsicas instrumentais, quanto as cançÔes, e estudando para a performance, para tocar cada vez melhor e continuar evoluindo.
A entrevista completa de Roberto CorrĂȘa para o Cumbuca estĂĄ em ĂĄudio, com uma seleção musical que percorre sua carreira e que pode ser conferida no SoundCloud da RĂĄdio Eixo.